Sob o sol escaldante do verão amazônico, o agricultor Cláudio Araújo da Silva pisa nos escombros e nas cinzas de seu antigo barraco, localizado numa área ocupada da fazenda 1.200, em Ourilândia do Norte, sul do Pará.
Em maio deste ano, Cláudio e outras dez famílias da ocupação tiveram suas casas incendiadas na calada da noite. Segundo os relatos dos moradores ouvidos pela Pública, um grupo de quatro pessoas atirou em direção às residências antes de atear fogo. Cartuchos deflagrados de espingarda calibre .20 nas imediações de duas casas da ocupação foram encontrados pela reportagem.
O incêndio criminoso é o capítulo mais recente de um conflito agrário que se arrasta há 13 anos na fazenda 1.200, onde um grupo de cerca de 150 famílias da Associação 8 de Março, ligada à Fetagri-PA (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Pará), reivindica desde 2006 a criação de um assentamento de reforma agrária.
As famílias pedem inclusão num projeto de assentamento (PA) já criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra): o PA Luciana. Segundo análises do Incra, do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e do Ministério Público Federal (MPF), pouco mais de um quarto da fazenda – cerca de 1.500 dos 5.200 hectares da área – incide sobre as terras do PA Luciana, uma área pública pertencente à União. É nesse pedaço de chão que, desde 2017, os ocupantes montaram suas casas guiando-se por um mapa do próprio órgão agrário.
Cláudio se emociona ao retirar restos de seus pertences do chão de terra batida, agora coberto do carvão em que se transformou sua antiga casa. “Foi à noite, quem tava por aqui caiu na cacaia [matagal]. Tiro demais e os cara tacando fogo”, recorda.
Em meio a panelas retorcidas pelo fogo, uma garrafa térmica quase derretida, a armação de ferro de uma mala de roupas, Cláudio conta ter boas lembranças dos Natais em família. Ele mostra a coleção de fotos do local com amigos e familiares, que tem no celular. “Hoje em dia ficou só a cinza e as fotos”, lamenta.
No mês anterior ao incêndio, a ocupação havia sido palco de outro ataque. Na noite de 14 de abril, duas motos com quatro pistoleiros dispararam contra as residências de outras quatro famílias. A curta distância, sobre janelas e portas, o calibre dos projéteis eram os mesmos: espingarda .20, que dispara dezenas de balas de chumbo. “Eles atiraram aqui na minha janela. Me deu muito medo. Tirei a minha mulher com os meus meninos daqui”, diz o agricultor Antônio Alves Barbosa, de 56 anos. Os disparos ocorreram na janela logo acima da cama em que os três netos dormem. Antônio vive com o filho, a nora, a esposa e os três netos em dois cômodos em um lote de quatro alqueires. A energia elétrica vem de uma bateria de carro que liga apenas uma lâmpada. “Eu tava aqui dentro de casa, dormindo. Meus três meninos [netos] dormindo na cama de lá [abaixo da janela alvo dos tiros] e eu mais a mulher dormindo em outra cama. Acordei pelos tiros e os cachorros que começaram a latir. Eles atiraram, montaram na moto e fugiram. Eram umas duas motos e acho que umas quatro pessoas. Quando eu saí de casa, escutei eles pipocando [atirando] a casa do meu vizinho”, relembra Antônio. O agricultor diz que tirou os familiares da casa por um tempo e só não a abandonou completamente por receio de que ela também fosse queimada.
Fazendeiro nega, polícia investiga
Os moradores da ocupação e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão ligado à Igreja Católica que acompanha conflitos agrários no país, suspeitam que tanto o episódio dos tiros quanto os incêndios estejam ligados ao fazendeiro capixaba Eutímio Lippaus, dono da fazenda ocupada. “A suspeita do atentado recai sobre o fazendeiro Eutímio Lippaus, que é o único que tem interesse em intimidar as famílias que continuam na luta pela criação de assentamento, tendo em vista que ocupam área pública reivindicada judicialmente pelo INCRA”, diz um trecho de nota divulgada em abril pela CPT de Tucumã, município vizinho a Ourilândia.
Os atentados ocorreram 11 dias antes de uma audiência judicial de desocupação da fazenda 1.200, realizada em decorrência da ação de reintegração de posse que Lippaus move contra os sem-terra.
Para os moradores, os episódios violentos ocorreram para pressionar a saída dos ocupantes. Na audiência, foi estipulado que os sem-terra deixassem o local até 10 de junho, mas a defesa dos ocupantes conseguiu suspender a decisão no Tribunal de Justiça paraense.
Procurado pela Pública, Lippaus negou qualquer participação nos episódios. “Aqui não se faz isso, não, isso é história desses bandidos. O dono aqui nunca fez disparo contra bandido nenhum, nunca queimou um barraco de um bandido sequer. Eles inventam tudo”, afirmou. “Aqui nunca ninguém mexeu num barraco desse povo”, garantiu o pecuarista.
Há um inquérito aberto na Deca (Delegacia de Conflitos Agrários), em Redenção (PA), para apurar os episódios. “Nos dirigimos até o local e constatamos que os crimes ocorreram. Em síntese: barracos queimados, que nós temos entendido aqui como dano qualificado. Também constatamos os disparos com arma de fogo: alguns transfixaram janelas e portas. O procedimento tramita em sigilo, mas toda a resposta tem sido dada com imparcialidade, isenção e toda a energia possível”, afirma o delegado titular da Deca, Antonio Mororó Júnior.
Com a suspensão da reintegração de posse, os ocupantes temem novos episódios de violência. “Assim que o juiz marcou a audiência de desocupação, as famílias sofreram um ataque, algumas casas foram alvejadas. Depois teve a audiência, ficou estipulado um prazo de 45 dias corridos para que as famílias saíssem voluntariamente da área. Uma semana depois da audiência, as famílias sofreram esse novo ataque: tiros contra as casas e os barracos queimados. A gente observa que cada vez que há um revigoramento da liminar de reintegração de posse há um novo ataque violento”, afirma Jamila Pereira de Carvalho, que integra o grupo de advogados da CPT que acompanha o caso.
Fonte: A Pública